domingo, 1 de novembro de 2015

A PARTIDA

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Muito já se falou deste expressivo filme. Apesar de tratar de “mortos”, o tema do filme não é propriamente a morte, como se supõe. Assim como as duas mortes no filme Hanami – Cerejeiras em Flor são “acidentes de percurso”, e a diretora alemã fala é da transitoriedade da vida e das coisas terrenas. Em Okuribito – Partidas , se acompanharmos a trajetória da personagem principal Daigo (um nokanshi, preparador de mortos para colocar na urna mortuária), e de todos os outros personagens que perderam um ente chegado, concluímos que as mortes são elos que ligam a história de todos e que levam a um mesmo tema: a redenção, e o perdoar e ser perdoado, sob a ética cristã.
Claro, num filme japonês há muitas nuances budistas: a purificação e o embelezamento dos mortos para serem levados para o além, observado pelo olhar dos que os amaram, ou que tiveram “entreveros” com o morto por alguma coisa não resolvida, em vida. Tudo num ambiente contido, gestos reservados, e ritual solene. As cenas de um morto sendo manuseado ali, na frente dos familiares, não causam morbidez nem nos despertam rejeição: Daigo, onokanshi, executa o trabalho com tamanha delicadeza e sensibilidade, como se estivesse interpretando uma coreografia teatral. Esta respeitosa e solene sensibilidade de Daigo leva mãe, pai, marido, ou filho dos mortos à catarse e a cenas de redenção e perdão, que são o ponto alto do filme. E, claro, ao previsível reencontro de Daigo com seu pai, que o havia abandonado e à mãe, por outra mulher, quando Daigo tinha seis anos de idade.
Ele experimentará, enfim, a redenção ao ódio e aos ressentimentos acumulados pela vida inteira. E perdoará o pai, ao constatar, através de uma descoberta insólita e poética, que o mesmo na verdade nunca o havia esquecido. E nos fica a esperança de que tudo vai se renovar, perpetuar. Só vendo o filme para compreender. Os últimos 15 ou 20 minutos do filme transcorrem num crescendo de emoções nos detalhes, olhares, gestos refreados, e no silêncio contido que diz por mil palavras.
A fotografia é belíssima, a paisagem do interior da província de Yamagata, Norte do Japão, registra o tempo transcorrendo lento e inexorável: quando Daigo e a mulher, Mika, chegam de Tóquio à cidadezinha, é fim de outono, os tambos (onde o arroz plantado já foi colhido) estão vazios, a névoa e o vento gelado prenunciam um inverno rigoroso. As primeiras neves cobrem as ruas, as casas, as montanhas, vem o Natal; a neve começa a derreter, estamos na semana do dia 3 de março, Dia das Meninas, hinamatsuri, quando as meninas de reúnem para exibir suas coleções de hinas – bonecas e bonecos miniaturas de princesas, príncipes e daimyos ricamente paramentados, rememorando lendas de antigas cortes.
Quase abril, a exuberante e colorida florada de cerejeiras e tulipas anuncia a primavera: depois do inverno branco (morte), o renascimento. Enquanto Mika transita pelo filme com adorável frescor de alegria e otimismo. Se o budismo está presente nos rituais solenes, nos pequenos gestos de compaixão e solidariedade (omoi-yari), e na reverência aos mortos, idosos e tradições, o cristianismo também, na música, nas mensagens implícitas de Natal, no ato do perdão, da redenção e do renascimento.
Tudo isso intercalado pela esplêndida trilha sonora entremeada de clássicos: Beethoven (cantataOde à Alegria, da 9ª Sinfonia.), Gounod (Ave Maria), Brahms (das Wiegenlied/Berceuse), e composições para violoncelo, Bach. (Daigo é um ex-violoncelista desempregado, tornado nokanshipor um acaso do destino e por necessidade). Aliás, as composições e interpretações ao violoncelo e toda a trilha já valem as duas horas da sessão.
Um filme sublime para ver, ouvir, sentir, e chorar


Disponível em: http://www.asiacomentada.com.br/2010/02/partidas-okubito-budismo-cristianismo-compaixo-perdo/

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