Houve um tempo em que o homem era somente uma idéia, um pensamento inquieto que de vez em quando teimava em lhes vir à mente.
Tupã, o furioso senhor do trovão, do alto de seu trono, olhou, certa vez, para aquelas bolas que enfeitavam o céu. Achou-as feias e murchas. Então, para suavizar um pouco a aura de tristeza que as envolvia, resolveu dar luz àquela idéia persistente.
Para isso escolheu a bola azul e nela colocou dois homens, Curu e Rairu, pai e filho, dando-lhes o poder de criar tudo o que fosse necessário à vida.
Curu e Rairu estavam felizes, radiantes mesmo com a abençoada missão, mas Tupã ainda não havia terminado.
“Faço-lhes, contudo”, disse ele, “uma restrição. Estão terminantemente proibidos de criarem gente, ouviram-me? Esqueçam-nas, para que desse modo consigam viver bem e em paz”.
Dito isto, Tupã afastou-se, deixando os dois homens terrivelmente frustrados.
Embora tristes, os dois foram fiéis às ordens do deus. Curu, sendo o mais velho e mais sábio, resignou-se logo, submetendo-se à suprema vontade. Rairu, entretanto, ainda sonhava em ver o novo mundo povoado.
'Para que um mundo tão grande e tão belo se não podemos compartilhá-lo?’ Perguntava-se.
Seu pai não tinha e nem procurava respostas. Já não comungava daquele entusiasmo quase obsessivo do filho. Costumava dizer-lhe que se Tupã quisesse ver esta terra povoada, cheia de gente, teria ele mesmo feito isto. Se não o fez é porque algum motivo havia. Há somente uma forma de entender e é descobrindo porque se quer entender. Quem sabe, se começássemos a receber gente e mais gente, começariam as mudanças. Poderiam vir outros tipos, diferentes, uns assim, com a pele mais clara e por isso mesmo, se julgando melhores que os outros. Seria o começo de nossa desgraça.
Rairu nada queria ouvir. Cansara-se da solidão. Para fugir da mesmice de sua vida, dormia não se importando se fosse noite ou dia.
Um dia, teve um sonho e em seguida tomou uma resolução: apanhou uma pluma branca; dependurada numa amendoeira, e fez com ela uma comprida corda de algodão que amarrou no tronco da árvore, metendo a outra extremidade num buraco de tatu.
Passado um tempo, homens e mulheres começaram a subir pela corda; feios, bonitos, puseram-se a subir.
Os mais inteligentes e pacíficos disseram pertencer à nobre raça dos Mundurukus. Proclamavam-se guerreiros invencíveis, desdenhando os ataques à traição e protegendo os filhos orfãos da parte derrotada. Trouxeram consigo macabros troféus, as pariná (cabeças dos inimigos mumificadas e, reduzidas em tamanho) e uma arte plumária de qualidade primorosa. Esta gente deixou Rairu perplexo. Assim continuou subindo gente; subia gente de tudo quanto era jeito pelo buraco do tatu.
Mas, de repente, ai, horror dos horrores! Para seu desespero Rairu viu um sujeito cara pálida tentando subir; um sujeito incomodamente estranho.
Rapidamente o jovem abaúna, lembrando-se dos conselhos de seu velho pai, cortou a corda, tampando o buraco com as mais pesadas pedras que pôde encontrar.
O tempo tornou a passar, ou melhor, a voar. As nações indígenas cresceram e se multiplicaram, espalhando-se por todo o grande e verde vale.
Os sábios e valentes Mundurukus foram para o baixo Caiari 1, até onde o rio deságua no Paranauaçu 2. Sua cultura floresceu, se expandiu, tornou-se Mundurukânia, a de ricas tradições, orgulho da raça tupi.
Certa manhã, Rairu, já esquecido do buraco do tatu, chamou seu pai para juntos irem caçar. Passaram perto do buraco e uma tristeza negra apossou-se de seus corações.
O branco conseguira afastar as pedras, saíra pelo buraco e sumira-se na floresta. A infelicidade e o desassossego haviam chegado.
O velho Curu preparou-se para algo ruim desde o dia em que soubera da desobediência do filho, porém, não pode evitar as lágrimas que teimosamente escorreram de seus olhos e numa voz terna e cansada, disse-lhe: “Desafiaste a ordem estabelecida por Tupã. Tua insatisfação levou-nos à ruína. Jovem tonto! Quisestes baixar as nuvens somente para fazer sair a chuva. Por tua escolha o mal está solto pelo vale, festejando o início de seu reinado. É chegado o fim da nobre e feliz, Mundurukânia, é chegado o fim para todo o povo da raça tupi”.
BRASIL; Altino Berthier, Amazônia Legendária, Poesanato, Arte e Cultura, Porto Alegre, 1999
SIGNIFICADO DA PALAVRA MUNDURUKU:
FORMIGAS GIGANTES
SUGESTÃO DE ATIVIDADE:
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